A falácia da tecnologia na transformação digital
As pessoas e a atuação das pessoas na mudança da cultura corporativa são o determinante na transformação digital, e não a tecnologia.
Lembre que máquina não pensa e não tem medo e, portanto, não resiste às mudanças. Quem resiste porque tem medo são as pessoas.
Por Joel Solon Farias Azevedo
Fundador da ProValore
O paradoxo da percepção individual e corporativa
Um ponto muito curioso é que as pessoas não resistem ou resistem muitos menos à mudança no nível pessoal.
Exemplos? A maioria das pessoas no nível individual adota o celular mais moderno, usa cartões de crédito e débito com aproximação, compra pela internet, não usa mais cheque, anda de carro com motorista do Uber, está nas redes sociais, etc.
Agora, vire a chave para o comportamento da mesma criatura no mundo corporativo e você pode encontrar em ser jurássico que trabalha com papel, carimbo, assinatura e escaninhos e guarda seus papeis em grandes arquivos de lata!
O que explicaria esta resistência absurda de permitir a mudança para facilitar a sua vida profissional, da mesma forma que a vida pessoal já foi facilitada pela transformação digital?
A Falácia da Tecnologia – Como as pessoas são a verdadeira chave da transformação digital
O pessoal da Delloitte e do MIT pesquisou por anos as barreiras da transformação digital, e elas não são tecnológicas, elas são humanas.
Está tudo no livro The Technology Fallacy: How People Are the Real Key to Digital Transformation, de Gerald Kane e outros autores.
As barreiras residem nos medos das pessoas, que por sua vez forjam as culturas organizacionais conservadoras e continuístas que barram as mudanças, preservam status e poder e privilegiam os interesses pessoais aos organizacionais.
O resultado disso é a organização parada no tempo ou evoluindo lentamente em velocidade menor do que a mudança externa exige.
Na maioria das vezes a organização deixa de existir rapidamente, quando opera em mercados em concorrência.
Quando não tem concorrência, como no serviço público, o que se vê é a manutenção de processos arcaicos em papel, certidões em papel até hoje, reconhecimentos de assinaturas por semelhança em cartórios até hoje. Décadas depois da assinatura digital e pouca coisa mudou!
O resultado você conhece direitinho: serviços caros, lentos e ineficientes que carregam um custo alto para a economia e que ninguém queria que existissem e que talvez não precisassem existir mesmo.
A constatação dos autores do livro é que é muito difícil promover a transformação digital na cultura errada, que gosta daquele passado charmoso, romântico e artesanal que não existe mais e que jamais voltará.
As pessoas e a cultura organizacional são o freio ou a turbina da transformação digital, e não a tecnologia
A tecnologia em si jamais ameaçou alguém. A mudança é que assusta e apavora as pessoas.
A tecnologia contribui para a disrupção quando aplicada em benefício das pessoas de fora (os clientes) e de dentro da organização. Quando facilita a vida das pessoas.
Assim, a transformação digital é função da agilidade, da flexibilidade e da capacidade da organização de alterar a sua cultura de orientação a mudança.
“A tecnologia é o meio para a transformação, e não a transformação em si. Ela diz respeito à capacidade que o ser humano tem de modelar novas soluções para as empresas e a sociedade – tão necessárias em um mundo em movimento.
O êxito no processo de adaptação das organizações ao novo não está relacionado exclusivamente à tecnologia. O sucesso está relacionado à maneira como as pessoas encaram essa nova perspectiva nas companhias e abraçam – ou não – essas transformações.“
Livro O NOVO CÓDIGO DA CULTURA: VIDA OU MORTE NA ERA EXPONENCIAL, de Sandro Magaldi e José Salibi Neto
O exemplo do processo eletrônico
Uma lei federal de 2006 (Lei 11.419) criou o processo eletrônico, um bom tempo depois de existirem as condições de segurança e confiabilidade do certificado digital coom assinatura eletrônica.
Hoje, duas décadas depois, ainda existe muito processo físico por aí.
À primeira vista, fica claro que mudar a legislação não é suficiente para mudar a realidade, quando as pessoas não concordam com a mudança e quando são capazes de barrar.
A leitura mais importante é que a gestão da mudança é mal gerenciada nas organizações, aquilo que John Kotter trata de forma muito clara no livro Sentido de Urgência, com um sequenciamento de compromissos e de etapas que precisa afastar os negacionistas e as pessoas que seriam capazes de bloquear e sabotar a mudança.
Isso explica Maquiavel, que disse que a NÃO mudança interessa para a maioria, que ganha com a situação atual.
O que vem pela frente, a inteligência artificial
Ainda há quem confunda automação com inteligência artificial.
Automação é uma coisa velha que se aplica a qualquer processo repetitivo com regras claras.
Exemplo? Uma autorização no seu cartão de crédito que envolve muitas entidades: a bandeira, o lojista, a administradora do lojista, o banco ou administradora do cartão do cliente e a disponibilidade de limite do cliente. Isto ocorre de maneira transparente em dois ou três segundos e sem intervenção humana.
Claro que quando o cartão de crédito nasceu não era assim. Tinha que ligar e esperar, esperar, esperar….
Aí veio a tecnologia como facilitador e permitiu a automação, o que é possível quando se tem regras claras e previsibilidade.
Voltemos agora ao processo eletrônico. Um processo, seja ele administrativo ou judicial, é mais ou menos previsível e muito repetitivo na sua essência.
Traduzindo: é passível de automação? Sim, em muitas atividades com regras e decisão pré-programada que dispensam atuação humana.
A inteligência artificial ainda é um conceito pouco utilizado no qual máquinas imitariam o funcionamento dos neurônios humanos para resolver problemas com base no comportamento humano, por meio de mecanismos matemáticos e lógicos.
O fator humano na operacionalização dos processos
Hoje convivem várias gerações no trabalho. Desde os mais jovens que nunca viram uma máquina de escrever até os mais antigos que trabalhavam sem depender de energia elétrica, na máquina de escrever manual.
O que nunca mudou é que as pessoas sempre trabalharam com modelos definidos pelas organizações burocráticas, com base na racionalização.
Quando isso não acontece e na falta de tais modelos, a regra é cada um do seu jeito.
Mas sempre copiando e colando, sempre replicando o passado.
Era assim na máquina de escrever e agora é assim no computador. A diferença é que com o menor esforço os textos cresceram e a prolixidade aumentou.
A produtividade não aumentou porque as atividades e os ritos contraproducentes foram mantidos no processo.
As pessoas ainda usam o computador como se fosse a máquina de escrever!
Quer comprovar? Observe alguém digitando o C cedilha e o til em um editor de textos como o Word. À toa, porque é exatamente para isso o editor existe, para não digitar e sim revisar e editar depois.
Agora multiplique a quantidade de toques desnecessários e serão milhares ao ano. Muito tempo, dinheiro e energia desperdiçados.
Vemos hoje a manutenção do trabalho artesanal em processos repetitivos e muito parecidos, como se fossem diferentes, mas não são.
Opera-se na premissa falsa de que os processos são únicos, quando na realidade não são. Apenas uma pequena minoria são únicos, a exceção.
O fator humano na arbitragem dos processos
Em função da premissa falsa de que os processos seriam únicos e que a análise e a decisão também seria única, carrega-se um risco operacional elevado e desnecessário para a maioria dos processos repetitivos que obedecem a regras claras e, portanto, tem decisão prevista e previsível.
Pode parecer que a atuação humana é sempre desenviesante em relação ao tratamento automático da automação ou da inteligência artificial, mas isto não é verdade.
A atuação humana pode ser enviesada e enviesante.
Quer exemplo? A 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo que anulou os juris do massacre do Carandiru e é a câmara mais favorável aos policiais.
Entre os advogados ela é famosa e conhecida como a “câmara de gás”. Veja os dados da pesquisa aqui – http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/camara-que-anulou-juris-do-carandiru-e-contra-acusados-diz-pesquisa.html
A inteligência artificial como solução desenviesante
Humanos erram mesmo em situações previsíveis, máquinas não. Humanos cansam. Humanos dormem. Máquinas não.
Em função disso, a maior parte das atividades dos processos que tem regras previsíveis devem ser entregues para as máquinas, que obedecem a programas homologados que não erram.
E tudo o quanto não atender às regras previstas (a exceção), deve ser separado em filas de trabalho para análise de decisão por humanos, quando exigir decisão intrinsecamente humana.
Desta forma a inteligência artificial pode e vai provocar uma revolução, principalmente no tempo de resposta e na qualidade dos serviços públicos.
Porque fora do serviço público isto já está acontecendo há muito tempo.
E você sabe disso no seu dia a dia.
Vai sobrar gente? Talvez. Quem é 100% operacional, sim. Os seres pensantes e críticos e orientados à solução? Jamais. Serão cada vez mais necessários.
O fato é que não precisamos de gente para fazer atividades repetitivas com regras rígidas e processos definidos desde a revolução industrial.
Ou não teríamos chegado onde chegamos.
Fontes:
Livro The Technology Fallacy: How People Are the Real Key to Digital Transformation, de Gerald Kane e outros autores
Livro O NOVO CÓDIGO DA CULTURA: VIDA OU MORTE NA ERA EXPONENCIAL, de Sandro Magaldi e José Salibi Neto
Livro Sentido de Urgência, de John Kotter
Livro Direito e inteligência artificial: Em defesa do humano, de Juarez Freitas e Thomas Bellini Freitas
Matéria – Câmara que anulou júris do Carandiru rejeitou 80% dos recursos de réus, publicada no G1 em 29 de setembro de 2016, e disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/camara-que-anulou-juris-do-carandiru-e-contra-acusados-diz-pesquisa.html
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