A cultura organizacional e a transformação digital
A recente análise do Nobel de Economia Philippe Aghion sobre o atraso tecnológico crônico da Europa e a necessidade urgente de uma destruição criativa ecoa bem além das fronteiras geopolíticas; ela é um diagnóstico preciso da saúde corporativa na era da transformação digital.
O conceito da destruição criativa foi formulado pelo economista europeu Joseph Schumpeter e remete à necessidade de conciliar a inovação acelerada com a inclusão social e atendimento das necessidades das pessoas.
Enquanto economias inteiras lutam para recuperar a soberania tecnológica, dentro das organizações trava-se outra batalha: a corrida da transformação digital.
Por Joel Solon Farias Azevedo
Diretor da ProValore
A dificuldade de acompanhar as mudanças
Organizações nativas digitais tem menos dificuldade em acompanhar ou mesmo antecipar a transformação digital requerida pelos seus clientes.
E as organizações que não são nativas digitais e estão nos estágios anteriores, classificadas como analógicas mesmo, ou migrantes digitais, tem uma dificuldade muitas vezes maior de fazer a transformação digital, em função das barreiras à mudança na sua cultura organizacional.
A sobrevivência da organização não depende mais ou apenas da adoção de tecnologia, mas da sua capacidade de escapar de uma cultura de menor esforço ou de não planejamento que vai resultar no acúmulo de dívida técnica.
Um caso concreto de dívida técnica
Exemplifiquemos: determinada organização vive o caos informacional com a existência de inúmeros painéis gerenciais, excesso de informação operacional e carência de informação gerencial de qualidade. O impacto é direto e reflete negativamente na tempestividade e na qualidade das decisões.
Mesmo assim e consciente da sua situação, segue fazendo mais e mais relatórios e mais painéis até mesmo individualizados, que não deveriam existir.
O que a organização deveria fazer? Parar para planejar e colocar à disposição das pessoas as informações completas em um único painel inteligente para que os interessados, por meio de filtros, acessem as informações que precisarem quando necessário.
Tal cultura, conhecida no Brasil como POG, ou programação orientada à gambiarra ou mesmo programação orientada a gato, resulta sempre numa lista interminável de solicitações de correções paliativas.
A consequência é um backlog eterno e sem fim com nenhum ou quase nenhum valor estratégico. E para piorar, a situação estimula a cultura de hierarquia de poder de influência dentro da organização, de ter a sua necessidade pessoal atendida, em detrimento do atendimento da necessidade de organização.
O remédio? Um processo evolutivo, bem planejado, bem dirigido e bem gerenciado de gestão da mudança por meio da transformação cultural e transformação digital.
Os estágios da evolução digital
Os nativos analógicos
Os nascidos antes da internet conhecem bem o mundo analógico, moroso e burocrático, e não tem nenhuma saudade dele. Tudo era complicado e tudo era devagar.
A maioria dos nativos analógicos migrou para a era da interconexão, adotou e usa as facilidades na vida pessoal.
Mas nas organizações não foi assim. Algumas organizações nativas analógicas também reagiram e migraram para a era digital, ou pelo menos fizeram o investimento em tecnologia necessário para fazê-lo. Ocorre que contar com equipamento não basta, se a cultura não for transformada.
Os migrantes digitais
É aqui que reside a maior armadilha da transformação digital. A organização migrante digital digitaliza processos antigos sem transformá-los. Ela migrou para o processo eletrônico com os objetivos piso de apenas desmaterializar o processo e eliminar o papel, mas continua operando no mesmo rito de complexidade das atividades manuais, porque manteve a burocracia do fluxo original com o papel em seu modus operandi e na sua cultura de verificações e aprovações.
A realidade é que o indivíduo migrante digital sabe usar a tecnologia, mas ele traduz o mundo novo com a gramática do velho: ele segue enviando e-mails como se fossem cartas formais e ele realiza reuniões virtuais com a mesma ineficiência das presenciais. É um estágio híbrido, onde a tecnologia é utilizada como meio, mas é desaproveitada no seu potencial de mudança da realidade.
Os nativos digitais
Para o nativo, o digital não é uma ferramenta, é o ambiente, é o mindset. A organização nativa digital nasce ágil, centrada em dados (data-driven) e é obsessiva por melhorar a experiência do usuário.
A estrutura é fluida, horizontal e adaptável. O indivíduo nativo entende que o aprendizado é contínuo e que a falha é parte do processo de aprendizado.
Aqui, a destruição criativa mencionada por Aghion é parte do DNA: produtos e processos obsoletos são continuamente canibalizados para dar lugar a inovações superiores. Processos ruins são simplesmente eliminados, deixam de existir.
A dívida técnica como dívida cultural
Não podemos, de forma alguma, acreditar que a dívida técnica se trata apenas de código ruim ou software desatualizado, não é isso. A dívida técnica é, fundamentalmente, uma dívida cultural.
A dívida técnica na organização analógica e migrante digital
A dívida técnica é impagável, quase invisível e muito difícil de precificar. Na maioria das vezes, ela surge da incapacidade de arquitetar soluções escaláveis e evolutivas.
A organização migrante digital, na tentativa de enxertar e integrar novas tecnologias em processos arcaicos, acaba criando monolitos, algo como sistemas legados gigantescos e interconectados onde mexer em uma ponta trava a outra. Assim, as atualizações são sempre retardadas em relação à necessidade e as migrações para soluções mais modernas são sempre encaradas como desafios quase impossíveis.
Diferente da organização nativa digital, a organização analógica/migrante digital não documenta sua dívida técnica e nem aloca energia e esforço de planejamento para resolvê-la.
O resultado é um sistema de TI que se assemelha a um eterno puxadinho estrutural, com muitas camadas de remendos sobre uma fundação precária.
Com o passar do tempo, a equipe de tecnologia involui para gastar a maioria do seu tempo na manutenção e na sustentação de sistemas ruins e pouco tempo pensando, inovando e atuando na melhoria e no futuro. Sim, você sabe que esta é a fórmula da morte.
O termômetro que mede a febre está na quantidade de pessoas apagando incêndios e, na cultura, quando invertida, de valorizar o bombeiro às vezes ao ponto de premiá-lo com cargo executivo e poder de perpetrar a situação indesejada.
Mas a culpa é de quem? Ou quem é o mais culpado, quem contribui para o backlog pobre ou a própria TI operando no modo reativo? Ou da organização quando falha na governança da estratégia e na governança de TI? Ou da organização quando escolhe um bombeiro para a liderança da TI?
A cultura do menor esforço e de não planejamento
A cultura brasileira já tem na sua base o menor esforço e a não orientação ao planejamento. Há que se fazer um grande esforço só para contornar o nosso software nativo. Associe isto a um mundo com mudança acelerada e requisitos de clientes cada vez maiores e temos como resultante uma cultura orientada ao curto prazo e ao menor esforço de execução, mascarada na solução simples de problemas e erros que não deveriam existir, sempre com a desculpa da urgência e da sobrecarga de trabalho, que na maior parte das vezes foi fabricada e que poderia ter sido evitada.
Nos ambientes dos migrantes digitais impera a lógica do curto prazo. Diante de um problema complexo, a liderança exige a solução mais rápida, não a mais robusta. Exige que faça funcionar agora para arrumar depois, esse é o mantra. O problema é que o depois nunca chega. É uma postura que escancara o não enfrentamento do problema real e uma grande aversão ao planejamento técnico sério e adequado.
A cultura do menor esforço se manifesta sempre na escolha das correções simples e não evolutivas. Ao invés de investigar a causa raiz de um erro no sistema, aplica-se um remendo, que vai falhar ou provocar outra falha diferente. Quando esse remendo falha, aplica-se outro remendo sobre ele. Assim se cria um ciclo vicioso onde a complexidade do sistema aumenta exponencialmente, enquanto a estabilidade cai na mesma proporção. E exige cada vez mais manutenção. E cada vez mais gente.
Esta realidade brutal contrasta totalmente com a visão de Aghion sobre inovação e o uso de inteligência artificial. Para liderar em tecnologias de ponta ou até mesmo se manter atualizado, é necessário investir nas oportunidades com visão de risco positivo e atuar fortemente na gestão da mudança, na coordenação das ações e em planejamento, muito planejamento.
A cultura do menor esforço é a antítese disso tudo: ela busca o risco zero imediato por meio de soluções conhecidas e medíocres, que resultarão na garantia do risco máximo de obsolescência no longo prazo.
O mito do backlog
Talvez o sintoma mais claro da disfunção na organização migrante digital seja a natureza do seu backlog, ou a lista de tarefas e projetos a serem desenvolvidos.
Na organização nativa digital o backlog é um instrumento vivo de estratégia. Ele é composto por hipóteses de valor, novas funcionalidades previstas para as versões futuras, melhoria na experiência de uso do cliente e melhoria na eficiência operacional e no desempenho da organização. Um backlog de verdade olha para o futuro.
Já na organização migrante digital, não existe um backlog real, mas sim um passivo orientado ao passado com requisitos não atendidos e erros que remetem mais a um repositório de desespero.
Na maioria das vezes, o que tais organizações chamam de backlog é, na verdade, uma lista de chamados de suporte glorificada e que está repleta de:
1. Correções de bugs, com necessidade de consertar erros;
2. Demandas paliativas de pequenos ajustes de baixo valor agregado e baixo impacto que não melhoram os processos de trabalho ou o desempenho;
3. Adaptações à regulação, estas sempre urgentes e prioritárias porque podem resultar em prejuízo financeiro ou de imagem.
Numa realidade assim, não há espaço para a evolução real dos resultados da organização porque a capacidade produtiva da tecnologia está sequestrada pela dívida técnica.
Aquele que seria o time de desenvolvimento não está construindo o futuro, mas agindo no passado como bombeiro num incêndio sem fim, que nunca apaga.
Isso gera uma frustração imensa nos verdadeiros talentos de tecnologia, que tendem a desistir da luta e ir embora, agravando ainda mais o problema que mais contribui para a estagnação da organização.
Conclusão
Voltando à tese de Philippe Aghion com a inevitabilidade da destruição criativa, vemos que a organização migrante digital nunca enfrentou um desafio existencial tão grande.
Muito grande, porque a transformação digital acelerada e a destruição criativa de Schumpeter não são mais opções, mas sim uma necessidade premente para a sustentabilidade de qualquer organização no futuro.
Muito grande também é a resistência em aceitar que a transformação digital exige uma refundação cultural e estrutural que vai muito além de hardware, software e redes.
A refundação passa por aceitar que precisa acabar com a cultura invertida que valoriza os bombeiros apagadores de incêndio, porque é exatamente isto que perpetua o atraso tecnológico crônico.
Para se manterem atualizadas ou até mesmo sobreviverem, as organizações migrantes digitais precisam parar de buscar a bala de prata tecnológica – que não existe – e começar o trabalho duro e sério de enfrentar as causas da sua dívida técnica, eliminar a cultura do remendo e construir um backlog estratégico que aponte, de fato, para o futuro.
Caso contrário, elas não serão as protagonistas da nova era digital e talvez irão para a história como aquelas que não reagiram ao seu tempo e ficaram para trás.
Inspirado a partir de
https://www.project-syndicate.org/commentary/innovation-policy-how-europe-can-return-to-technological-frontier-by-philippe-aghion-2025-12/portuguese
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